Próximo ao natal de 1895 a cidade Italiana de Pádua, ainda sofria com as consequências da instabilidade política e das guerras de anos anteriores.
(Para quem não sabe, Pádua, na época romana, era chamada de “Patavium”, terra natal do famoso orador e escritor Lívio, mas ele era péssimo em latim e sempre que discursava, tinha quem dizia: “não entendi patavina nenhuma”, daí o ditado popular utilizado até os dias atuais, mas esta é outra história).
Voltando a história de Pádua, além dos romanos, a cidade passou por muitos e muitos “senhores” e por volta de 1797 a região pertencia à República de Veneza, passando logo a seguir, para o domínio da França, de Napoleão Bonaparte, para o Império Austríaco e, somente em 1866, passou para o Reino da Itália que, mesmo assim, demorou vários anos para que tivesse estabilidade política e é justamente por isso que, por volta de 1890, vivia um caos econômico resultando em uma péssima vida para os seus moradores.
Pois é, como dizíamos, no início do inverno daquele ano de 1895, a família Zoccarato vivia justamente nas cercanias da cidade de Pádua, mas, apesar de tudo, a Elizabetta, a “Domênica” como era chamada por todos, tentava vencer mais um dia da sua difícil vida e preparava mais um queijo que, parte ela vendia e a outra parte era para o sustento da família (era a sua especialidade e o seu queijo era famoso na região).
“Domênica” casara-se com Giorgio Zoccarato em 1882, na capela da cidadezinha próxima de São Giorgio Della Pertelle e o casal já tinha cinco filhos, o mais velho com 13 anos e o mais novo com pouco mais de três anos de vida. Na verdade, eles tiveram seis filhos, mas um deles havia morrido com poucos dias de vida.
Eram lavradores, como a maioria das pessoas daquela região, mas não havia emprego, quando encontrava algum, recebiam tão pouco que mal dava para comprar um pouco de alimento.
Como sustentar uma família tão grande? A solução (solução?), bem, vamos aos fatos:
Certo dia, Giorgio voltou da cidade e estava eufórico. Chamou a sua esposa naquele jeitão de patriarca italiano:
— Domênica! Vem cá!
— Porca miséria mulher! É agora ou nunca! Ou acabamos com esse sofrimento todo, ou que seja lá o que Deus quiser! – E mostrou para ela um folheto que alguém lhe entregara na cidade.
Domênica, que não sabia ler nem escrever, apanhou o folheto, notou que estava sujo e meio amassado, viu o desenho colorido de um belo navio a vapor e muita coisa escrita, mas ficou sem entender nada, olhou para o marido, como que esperando mais explicações.
Ele apanhou de volta o folheto e ficou “batendo” nele com as costas da mão direita, como se aquele pedaço de papel tivesse vida, enquanto esclarecia:
— Vamos para o Brasil mulher! No outro lado do mundo. Esse folheto diz que eles pagam à viagem. O Toninho já foi com a família toda, os Vendetti também vão. Dizem que lá tem terra sobrando e não é como aqui que precisa arar e adubar, senão não produz nada, lá toda a terra é boa e tudo que se planta dá.
Ela ficou apavorada, não tinha a mínima ideia de onde ficava esse tal de Brasil. Na sua cabeça começou a passar “mil” perguntas sem respostas:
Como seria a viagem com cinco crianças ainda pequenas? Como seria a vida, as pessoas, a casa, a comida? Enfim, sua cabeça estava toda embaralhada, mas ela sabia, mais do que ninguém, que do jeito que estava não podia continuar, além do mais, naquela época, era costume a mulher ser obediente ao marido e se ele decidiu ir, caberia a ela acompanhá-lo.
(Folhetos de propaganda idênticos àquele que o Giorgio trouxe, foram distribuídos por todo o norte e nordeste da Itália. Eles foram produzidos pelos cafeicultores do Brasil, principalmente os paulistas, os cariocas e os mineiros e tinha como objetivo obter mão de obra barata para os cafezais, substituindo assim os escravos que foram libertados pela Lei Áurea em 1888).
“Domênica” acabou “embarcando” naquela ideia e conta como foi:
— Colocamos à venda nossos parcos bens, que eram duas vacas onde eu tirava o leite para o queijo e para as crianças, um burrinho já de idade avançada, um arado, também velho e já todo remendado e alguns móveis caindo aos pedaços. Menos de três meses depois estávamos prontos para a viagem.
— Subimos na carroceria de um velho carroção. – continuou ela – O Giorgio, eu e nossos cinco filhos: Pietro Antônio (com 13 anos), Rosa Paola (11 anos), Conrado Vittorio (seis anos), Virgíneo (quatro anos) e Demétrio (três anos). Tínhamos duas únicas malas, dessas de papelão curtido, uma trouxa (um lençol com roupas dentro e amarrado nas quatro pontas), a roupa do corpo, a fé e a coragem.
— Apesar do desconforto, aquele carroção nos levou até o Porto de Gênova, de onde sairia o Navio para o Brasil. Estávamos preocupados porque não havia nenhum acerto prévio com os promotores da viagem e tudo era feito na hora do embarque (algumas famílias eram aceitas, outras não!).
— Felizmente, – continuou ela – a minha família foi aceita e embarcamos no vapor Fortunata Ragio. Não lembro a data exata, mas acredito que foi no 1º semestre de 1896.
“Domênica” continuou com o seu relato:
— No início tudo era lindo e novo. Mas, assim que o navio partiu, ficou tudo mais difícil e nada ajudava: as acomodações eram péssimas, a comida pior ainda e como nenhum de nós nunca tinha viajado no mar, acabamos adoecendo e passando quase toda a viagem deitados, quase sempre em um canto qualquer no convés do navio, já que os aposentos eram super lotados e insuportáveis.
— O desembarque no Brasil foi no Porto de Santos. Fomos colocados em uma longa fila e um funcionário ia anotando.
— Quando chegou a nossa vez, ele perguntou ao Giorgio:
— Nome, idade e quais pessoas estão contigo? Ele não entendeu nada daquela língua estranha e alguém traduziu. Giorgio então respondeu:
— Eu, Giorgio Zoccarato, 40 anos, minha esposa Domênica, – dei-lhe um “cutucão” que deve ter doido bastante. – Explicou ela com um sorriso meigo nos lábios – Ele então corrigiu:
— O nome dela é Elizabetta e os meus filhos são: Ele ia dizer o nome dos filhos quando foi interrompido pelo funcionário:
— Não! Não é preciso dizer os seus nomes, apenas quantos são.
(Assim, no registro de desembarque da família de Giorgio Zoccarato foi anotado: Zoccarato, Giorgio, 40 anos, esposa e cinco filhos).
“Domênica” continua seu relato:
— Depois disso, fomos levados para uma estação de trem, onde um funcionário ficava gritando os nomes das famílias. Eu me lembro disso, porque o funcionário tinha o costume de colocar a mão na cabeça de um a um, enquanto contava os membros da família, só então autorizava o embarque no trem.
— O trem partiu da cidade de Santos, rumo à cidade de São Paulo. Lá fomos colocados em uma enorme pensão que eles chamavam de hospedaria (Hospedaria do Imigrante, no bairro do Brás).
— Assim que chegamos àquela pensão, antes de qualquer outra coisa, alguém nos procurou e fomos informados que iríamos trabalhar em uma fazenda de café na região de São Carlos, interior de São Paulo. Foi lá que tivemos nossos outros cinco filhos, são eles: Maria, Paschoal, Jorge, Giustina e Antônio.
— Voltando a hospedaria, – continuou ela – naquela noite de chegada aconteceu um fato gozado:
— Foi-nos servido um jantar naquelas imensas mesas. Era uma sopa de macarrão que estava deliciosa, mas o Giorgio, que adorava colocar queijo ralado na sopa, apanhou um grande pote que estava sobre a mesa e encheu o prato, mas assim que colocou a comida na boca, virou para trás, cuspiu tudo fora, tossindo como louco e olhando para mim com os olhos arregalados, dizendo:
— Mama mia! Que queijo ruim!
— Só então ele foi descobrir que naquele pote, ao invés do queijo ralado, havia farinha de mandioca.
(Para quem não sabe, o Giorgio Zoccarato e a Elizabetta Zulian foram meus bisavós, por parte da mãe).
Que a paz esteja com todos.
Darci Men.