Coração de Culpa

O Grito do Cabeça de Cuia

As ruas de terra batida da periferia de Teresina tornavam-se ainda mais estreitas sob o céu nublado, o clima quente e úmido do Piauí intensificando a sensação de opressão que pairava no ar. As casas, simples e inacabadas, com tijolos aparentes, eram cercadas por mangueiras e cajueiros, cujas folhas emitiam um farfalhar suave, interrompido apenas pelo som distante de uma rádio comunitária e o coaxar dos sapos que se escondiam nas poças deixadas pela última chuva.

João Miguel, um jovem estudante de 16 anos, caminhava por essas ruas com a mochila surrada pendendo de um ombro. Seus olhos, profundos e cansados, refletiam o peso de uma culpa que ele mal compreendia, mas que sentia crescer a cada dia. A relação com sua mãe, sempre tensa, havia se tornado insuportável. Pequenos conflitos diários transformavam-se em discussões acaloradas, onde palavras afiadas eram lançadas como dardos, deixando feridas invisíveis em ambos.

Naquela noite, João Miguel mal conseguia respirar em sua própria casa. O cheiro de comida caseira, que normalmente trazia um conforto simples, agora parecia nauseante. A presença de sua mãe, silenciosa na cozinha, fazia com que ele se encolhesse no canto do quarto, evitando qualquer contato. Havia algo de errado, algo que ele não podia nomear, mas que sentia rastejando nas sombras.

As primeiras visões começaram de forma sutil, como sombras indistintas à beira da visão. Mas logo se tornaram mais vívidas e aterrorizantes. Um homem, ou o que parecia ser um homem, aparecia em seus sonhos e, às vezes, na esquina de uma rua deserta. Sua cabeça não era uma cabeça comum; era uma cuia, grande e oca, refletindo o vazio que João Miguel sentia dentro de si. Esse ser, que os mais velhos chamavam de Cabeça de Cuia, era uma lenda local, um conto de advertência para aqueles que desrespeitassem suas mães. Diziam que ele era um jovem que, após matar a própria mãe, foi condenado a vagar pelas margens do rio Parnaíba, punindo aqueles que cometiam o mesmo pecado.

No começo, João Miguel pensou que estava enlouquecendo. Mas as aparições se tornaram mais frequentes e, em breve, ele começou a ouvir sussurros quando estava sozinho. “Ela te ama… por que você não a ama?”, o vento parecia sussurrar nas noites mais escuras. O som de passos na calçada de terra, o leve toque de dedos invisíveis em sua pele, o frio que o envolvia mesmo no calor do verão piauiense – tudo isso era sinal de que o Cabeça de Cuia estava se aproximando. João Miguel sabia que não podia ignorar esses sinais por mais tempo.

O medo começou a consumir sua vida. Na escola, ele mal conseguia se concentrar. Seus amigos notaram o distanciamento, o olhar perdido e a palidez que parecia crescer a cada dia. À noite, ele acordava suado e ofegante, seus pesadelos eram preenchidos pela figura do Cabeça de Cuia, que o observava com sua cabeça oca, seu grito quase mudo que perfurava seus pensamentos e gelava sua alma, como se aguardasse o momento certo para atacá-lo.

Certa noite, após mais uma discussão com sua mãe, João Miguel decidiu que não podia mais viver assim. Ele precisava entender o que estava acontecendo, precisava quebrar essa maldição antes que fosse tarde demais. Decidiu, então, procurar Dona Marinalva, uma vizinha idosa que muitos diziam ter “dons”. Ela era conhecida por sua sabedoria sobre as lendas e mistérios da região.

Quando João Miguel bateu à porta da pequena casa de Dona Marinalva, o coração quase saltando do peito, ele foi recebido com um olhar que parecia saber exatamente por que ele estava ali. Sem dizer uma palavra, ela o convidou a entrar. A casa era simples, com móveis antigos e imagens de santos penduradas nas paredes. O cheiro de ervas secas penduradas no teto misturava-se com o aroma de café recém-passado.

“Eu sabia que você viria, João Miguel,” disse Dona Marinalva, sua voz suave, mas carregada de uma gravidade que fez João Miguel estremecer. “Você viu o Cabeça de Cuia, não é?”

João Miguel acenou com a cabeça, sentindo um nó na garganta. “Ele… ele me persegue. Eu o vejo em todos os lugares. Acho que… acho que é porque eu brigo muito com a minha mãe. Eu a magoo… e ele quer me levar.”

Dona Marinalva suspirou e fez sinal para que João Miguel se sentasse. Ela começou a mexer em um caldeirão no fogão a lenha, e enquanto fazia isso, explicou: “O Cabeça de Cuia é uma lenda, sim, mas as lendas têm poder, principalmente quando alimentadas pelo medo e pela culpa. A história dele é um aviso, João Miguel. Não é só sobre o que você faz com sua mãe, mas sobre o que você carrega no seu coração. O Cabeça de Cuia é a personificação da culpa. Ele vem para aqueles que não conseguem se perdoar.”

João Miguel sentiu as lágrimas escorrerem de seus olhos. “Mas como eu posso me perdoar, Dona Marinalva? Como eu posso parar de vê-lo?”

A velha senhora serviu-lhe uma xícara de chá fumegante e segurou suas mãos com firmeza. “Você precisa reconciliar-se com sua mãe, João Miguel. Precisa pedir perdão, mas também precisa perdoar a si mesmo. Essa criatura não pode ter poder sobre você se o seu coração estiver em paz.”

Aquelas palavras ressoaram em João Miguel, como se um peso começasse a ser levantado de seus ombros. Ele sabia que não seria fácil, mas era a única forma de quebrar a maldição. Com o coração pesado, mas determinado, João Miguel voltou para casa naquela noite.

Quando entrou, sua mãe estava sentada na sala, seus olhos fixos na TV, mas sem realmente prestar atenção. João Miguel se aproximou devagar e sentou-se ao lado dela. Por um momento, o silêncio entre eles foi tão pesado quanto todas as brigas que haviam tido.

“Mãe…” João Miguel começou, sua voz trêmula. “Eu… eu sinto muito. Por tudo. Eu sei que não tenho sido o filho que você merece. Eu só… eu só quero que a gente fique bem.”

Sua mãe virou-se para ele, surpresa. Seus olhos marejados encontraram os de João Miguel, e por um momento, toda a tensão que existia entre eles pareceu desmoronar. Ela estendeu a mão, tocando o rosto de João Miguel com ternura. “Meu filho… eu te amo, sempre te amei. Eu só quero que você seja feliz.”

Naquele momento, João Miguel sentiu uma onda de calor passar por seu corpo, dissipando o frio que havia sentido por tanto tempo. A figura do Cabeça de Cuia, que parecia sempre espreitar nas sombras, foi se desvanecendo até desaparecer completamente. João Miguel sabia que a entidade só teria poder sobre ele enquanto ele mantivesse aquela culpa em seu coração.

Com o tempo, as visões do Cabeça de Cuia cessaram, e João Miguel começou a reconstruir sua relação com sua mãe. Ele ainda vivia na periferia de Teresina, mas agora as ruas de terra batida pareciam menos opressivas, e o silêncio da noite, menos ameaçador. Ele havia aprendido que o verdadeiro monstro não era o Cabeça de Cuia, mas o peso de um coração que não se permite perdoar, e o gelo do grito quase mudo jamais seria esquecido.

E assim, a lenda do Cabeça de Cuia continuou a ser contada pelas ruas da cidade, mas agora João Miguel sabia que o maior perigo não estava nas margens escuras do rio Parnaíba, mas dentro de cada um que carrega culpa e arrependimento sem buscar redenção.

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