Crônica: Orelhões e Sonhos

São Bernardo do Campo tem um encanto próprio, daqueles que se encontram nos detalhes das rotinas diárias e nas amizades que florescem nos parques e esquinas. Crescer aqui foi como viver em um livro de aventuras, cada dia trazendo novas descobertas e histórias. Entre todas as páginas da minha vida, uma das mais queridas é a que compartilhei com Ana, minha melhor amiga.

Ana e eu tínhamos um refúgio secreto: uma escadaria no bloco dois da escola. Era lá que passávamos horas mergulhados em nossos mundos imaginários, eu com meus gibis do Superman e ela com suas ideias vibrantes. Nossa amizade era um espaço onde a fantasia e a realidade se encontravam de forma mágica.

Lembro-me de uma tarde específica que ficou gravada na memória, uma daquelas que moldam a alma de um adolescente. Eu havia acabado de ler “A Queda de Murdock”, uma das histórias mais sombrias e profundas do Demolidor. O protagonista, em um momento de solidão extrema, ligava para um orelhão que falava as horas apenas para ouvir uma voz humana. Aquela cena me atingiu como um soco no estômago, revelando uma profundidade de desespero que eu não conhecia até então.

— Ana, você precisa ouvir isso — eu disse, com os olhos brilhando de excitação e um pouco de melancolia.

Ela sentada nas escadas na lateral do bloco vazio, em em pé na sua frente. Ana olhou para mim, curiosa.

— O que foi, Diogo?

— No último gibi do Demolidor, “A Queda de Murdock”, ele está tão sozinho que liga para um orelhão que fala as horas só para ouvir uma voz humana. Imagina chegar a esse ponto de solidão…

Ana franziu a testa, pensativa, e depois segurou minha mão.

— Isso é muito triste, Diogo. Às vezes, a solidão pode ser esmagadora, não é? Mas você sabe, eu sempre estarei aqui para você. Nunca vai precisar ligar para um orelhão para ouvir uma voz humana.

Aquelas palavras ficaram comigo. Ana tinha uma maneira de transformar a escuridão em luz, de trazer conforto em meio à {{burnout}}. Nossa amizade era um porto seguro, um lugar onde a solidão não encontrava espaço.

As sextas-feiras eram sagradas para nós. Era o dia dos filmes, das aventuras cinematográficas que nos faziam rir, chorar e sonhar. Naquela noite, Ana trouxe “Jovens Bruxas”. Enquanto o filme se desenrolava, a história das quatro jovens amigas e seus poderes místicos nos fascinava. A magia, tanto literal quanto metafórica, parecia se infiltrar em nossas vidas, tornando nosso vínculo ainda mais forte.

— Diogo, imagina se a gente tivesse poderes assim — Ana comentou, seus olhos brilhando de excitação. — O que você faria?

Sorri, pensando nas infinitas possibilidades.

— Acho que usaria meus poderes para ajudar as pessoas, como o Superman. E você?

Ela riu, jogando um pouco de pipoca em mim.

— Eu não sei… talvez eu faria um feitiço para que nossos sonhos se tornassem realidade.

Essa era Ana. Sempre otimista, sempre sonhadora. E talvez fosse essa magia que ela trazia para minha vida que fazia tudo parecer possível. Mesmo quando a realidade da vida nos separou, com seus desafios e forças invisíveis, aquelas lembranças permaneceram como um farol de esperança.

Os anos passaram, e enfrentei minha própria jornada sombria. A separação de Ana, os pensamentos intrusivos do TOC, a solidão esmagadora. Mas, em algum lugar no fundo do meu coração, as palavras e os momentos compartilhados com Ana continuavam a me dar força.

Anos depois, Conhecer Jennifer foi como reencontrar uma velha amiga, alguém que trouxe de volta a luz e a magia que eu pensava ter perdido. Juntos, assistimos “Jovens Bruxas”, e pela primeira vez em anos, consegui revisitar aquele momento sem sentir o peso do passado.

Hoje, sentado na sala de casa ao lado de Jennifer, cercado por livros e quadrinhos, sinto uma paz que há muito não sentia. Decidi transformar minha história em uma crônica, uma forma de compartilhar minha jornada e, talvez, inspirar outros a encontrar sua própria luz na escuridão.

A vida é cheia de altos e baixos, momentos de desespero e de esperança. Mas, assim como o Demolidor encontrou forças para se reerguer, eu também encontrei. E sei que, não importa o que o futuro traga, sempre haverá uma Ana, uma Jennifer, ou uma voz interna amiga

para nos lembrar que nunca estamos realmente sozinhos.

E, assim, continuo minha jornada, sabendo que, mesmo nas noites mais escuras, há sempre uma luz esperando para ser descoberta. Afinal, a verdadeira magia está nas conexões que fazemos, nos momentos que compartilhamos e nas histórias que contamos.

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