“Igraine pôs de lado o bordado. Afinal de contas, não estava manchado; as lágrimas vertidas pelas mulheres não deixam marcas no mundo, pensou com amargura.”
Neste segundo grande capítulo de As Brumas de Avalon, Gwenhwyfar e Morgana polarizam a história. Uma representando o cristianismo, a outra, a velha crença. Uma, recatada e reprimida pelos pudores da religião, a outra, senhora de si e de suas paixões. Uma, como símbolo de Camelot, a outra, de Avalon…
Poderíamos seguir com muitos mais exemplos, pois este contraste entre as personagens reforça a imagem de como o cristianismo – guiado por homens – podou o feminino, tornando-nos paranoicas e receosas de nossos próprios corpos. Tema representado por toda a falta de confiança em si mesma que Gwenhwyfar mostra durante boa parte da trama.
Morgana é o contraponto a esta representação, personificando a luta pelo direito ao feminino como forte, como o próprio direito a vida. E, mesmo com inseguranças normais a qualquer pessoa, segura de si e do direito a usufruir de seu corpo conforme sua vontade.
– Sua voz é linda, irmã. Você aprendeu a cantar assim em Avalon?
– Sim, minha senhora, a música é sagrada. Não aprendeu harpa no convento?
– Não, pois parecia impróprio a uma mulher erguer a voz ante o Senhor – respondeu Gwenhwyfar com um recuo.
– Vocês, cristãos, gostam demais da palavra impróprio, especialmente se no que se relaciona às mulheres. Se a música é um mal, é mal também para os homens. E se é uma coisa boa, não devem as mulheres fazer todo o bem que puderem para compensar o suposto pecado cometido na criação do mundo?
Camelot
Seguindo a forma do Livro 1, continuamos a conhecer a lenda do rei Artur pela visão de suas heroínas – Gwenhwyfar, sua esposa; Igraine, sua mãe; Viviane, a Grande Sacerdotisa de Avalon e sua tia; e Morgana, Senhora do Lago e sua irmã – nas terras que mais tarde se tornariam a Grã-Bretanha – sua luta contra as invasões saxônicas e seu esforço para unificar o reino.
É neste Livro 2, por exemplo, que Artur transfere a corte para Camelot por questões estratégicas de guerra, por ser um território mais fácil de defender do que as terras da antiga capital do reino, Caerleon.
Livro 2
Como prelúdio desta jornada, acompanhamos a gravidez de Morgana. Para esconder de todos sua condição, ela foi para o Norte, ficar com a tia Morgause, que não a julgaria. Ainda assim, não confia o suficiente para se abrir, para contar quem é o pai e por que algo que poderia ser uma dádiva é tão doloroso.
Lot e Morgause fazem planos para o filho da sobrinha. A criança é rival de seus próprios filhos na sucessão ao trono de Artur, já que ele não tem herdeiros. Lot quer aproveitar que Morgana teve um parto difícil e, de alguma forma, usar esta circunstância como desculpa para matar a criança, mas, por alguma razão não totalmente explicada, Morgause não o faz.
A Grande Rainha
Filha do rei Leodegranz, seu pai faz um acordo com Artur para que se case com ela. Gwenhwyfar, entretanto, tem medo dos planos do pai, tem medo de espaços abertos, tem medo das mudanças que estão prestes a acontecer… Ela parece estar sempre assustada e com medo de tudo e de todos.
Da forma como são descritas as suas fobias, parece que ela tem agorafobia, por isso vive presa entre os muros do castelo e, talvez, isto seja uma metáfora para as paredes de uma prisão ideológica – religiosa – em que o cristianismo a confinou.
Conforme a narrativa avança, outras pressões fazem com que a rainha não seja tão severa quanto à religião, mesmo tendo sérias discussões com Artur sobre pagãos x cristãos, em certo momento da história pede um talismã ou feitiço à Morgana para ter um filho, posto que uma de suas (poucas) funções como rainha é dar um herdeiro para o reino.
Gwen é uma personagem que está sempre em conflito entre os seus desejos mais íntimos e suas convicções religiosas. Nisto, ela e Morgana são parecidas – pois as duas acreditam que as coisas ruins que lhes aconteceram são resultado de terem falhado cada qual com a sua fé.
À volta dela, a noite parecia respirar tristeza e desalento.
Por quê?, perguntava-se Gwenhyfar. Artur está feliz. De nada pode me censurar. De onde vem essa tristeza que paira no ar?
A velha e a nova religião
Artur jurou proteger Avalon, mas escolhe para esposa uma mulher cristã. O que é mais um indício do conflito de fé naquelas terras e nos corações dos personagens.
Tanto assim, que o rei escolhe como dois de seus conselheiros o Merlin e padre Patrício, que estão sempre discutindo assuntos religiosos. O mago sempre mais tolerante quanto à intolerância do padre. O livro é pautado por estes debates teológicos como se fossem personificações dos sentimentos contraditórios dos outros personagens que estão ao redor.
Representando a nova ou a velha religião, porém, ninguém está (ou estará) como ou com quem realmente queria, estão todos servindo suas vidas ao reino e, consequentemente, aos seus deuses. Este é o peso da crença, seja ela qual for.
Mas também há uma passagem muito bonita na narrativa quando cristãos e pagãos abandonam suas diferenças e se deixam levar pela beleza da arte, da música:
Levou as mãos às cordas e começou a tocar. Gwenhwyfar ouvia, encantada, e suas servas aglomeraram-se na porta para ouvir também, sabendo que partilhavam de uma exibição real. Ele tocou por muito tempo na penumbra que se intensificava, e, enquanto ouvia, Gwenhwyfar sentiu-se transportada para um mundo em que pagão ou cristão era a mesma coisa, guerra ou paz também, mas onde apenas o espírito humano, flamejando contra as trevas como uma tocha sempre acesa, tinha valor. Quando as notas da harpa finalmente silenciaram, ela não podia falar, e viu que Elaine chorava em silêncio.
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Leia mais no blog:
A Senhora da Magia – As Brumas de Avalon (Livro 1)
O Gamo-Rei – As Brumas de Avalon (Livro 3)
O Prisioneiro da Árvore – As Brumas de Avalon (Livro 4)
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