“Quer nos contar como morreu? Quer nos contar sobre os outros mundos, nas estrelas, as outras espécies de homens, as outras vidas?”
Já tinha ouvido falar de Ursula K. Le Guin, mas, por alguma razão, e mesmo gostando de ficção científica, nunca tinha lido nada da autora.
A oportunidade perfeita surgiu quando vi que o livro do mês de setembro/2017 do Leia Mulheres de São Bernardo seria A mão esquerda da escuridão e que, por motivos de (não) trabalho, finalmente conseguiria participar de um dos encontros.
Tratei então de marcar o dia na agenda e arranjar o livro pra ler – peguei emprestada numa das bibliotecas públicas da cidade uma edição de 1982, publicada pelo Círculo do Livro.
O livro
Somos apresentados ao mundo em que viveremos nesta leitura por uma parada, que nos é narrada por Genly Ai – um humano da Terra que está em missão diplomática em nome do Conselho Ecumênico.
Estamos no planeta Gethen, chamado de Inverno por emissários anteriores. A parada está acontecendo em Erhenrang, capital de Karhide, onde Ai espera convercer o rei Argaven a juntar-se à humanidade organizada sob o Conselho – para trocarem conhecimentos, já que o planeta é muito afastado pra que possam ter uma troca comercial efetiva.
Pelos olhos do emissário, conhecemos Estraven, primeiro-ministro daquele país e que está tentando convercer o rei dos benefícios deste acordo interplanetário, não só para o seu povo, mas para todo o mundo em que vivem.
Infelizmente, como resultado de intrigas causadas por brigas pelo poder, Estraven é acusado de traição e condenado ao exílio. No decreto real, o Rei Louco estende a punição àqueles que o auxiliassem de alguma forma. Assim, Genly Ai perde seu único aliado ao mesmo tempo em que corre perigo por estar associado a ele.
O ponto interessante aqui é que convenceram Argaven de que Estraven seria um traidor por estar colocando o “mundo” acima de sua pátria. E este é um dos questionamentos entremeados no livro, embora pareça não ser um dos destaques: Afinal, o que é ser patriota?
Ai foge com medo de ser também caçado, então usa a desculpa de conhecer outras regiões do território para chegar próximo da fronteira e fugir para Orgoreyn, país vizinho e inimigo político de Karhide.
Lá, tenta dar seguimento à sua missão diplomática, mas se vê envolvido no perigoso jogo político daquele país e acaba sendo mandado para uma prisão de trabalhos forçados, onde sofre inúmeros maus tratos e torturas – como todos os outros presos.
A autora narra os capítulos pelos olhos do personagem principal intercalando-os com mitos, lendas e trechos de textos religiosos daquela planeta. O que nos faz mergulhar ainda mais naquele ambiente alienígena para tentar compreender suas sociedades e culturas. No entando, a partir de seu desterro, Estraven passa a ser uma segunda (ou terceira?) voz narrativa, pois agora também acompanhamos sua jornada através dos registros que faz em seu diário.
Em certo ponto da história, Ai e Estraven empreendem uma fuga juntos e é neste trecho do livro, em que os relatos dos dois se intercalam com maior frequência, que a narrativa parece ficar mais dinâmica e interessante ao retratar a interação entre estes dois humanos pertencentes a mundos tão diferentes.
Eles fogem por uma região de gelo eterno. É um trecho belíssimo, não só pela descrição da paisagem, mas também para a relação dos personagens, pois aqui eles parecem finalmente estar conseguindo se comunicar de forma eficiente. E é onde nós leitores, assim como Ai, começamos a entender e nos identificar com aquela “raça” tão “alienígena” quanto nós mesmos.
Ambissexualidade
O ponto que chama mais atenção na caracterização do povo de Inverno é o fato deles serem ambissexuais. Uma mesma pessoa pode tanto gerar como conceber, pois o corpo, os órgãos reprodutores se adaptam ao parceiro.
Eles também têm um perído certo para terem relações sexuais chamado de kemmer. É neste período que o corpo começa a sofrer alterações hormonais e, então, o corpo do parceiro responde de acordo – assim, no casal sempre há macho e fêmea para que possa haver a reprodução.
Este pequeno detalhe da fisiologia dos gethenianos pode alimentar muitos debates sobre a questão de gênero, já que neste planeta não há esta distinção. No próprio livro, por exemplo, lemos o relatório de uma humana enviada antes de Ai que fala deste “problema sexual” tão difícil de compreender por humanos (terráqueos) que estão tão acostumados a dualidade masculino x feminino de tal forma que até estendemos esta divisão sexual para outros âmbitos da vida ao classificar coisas com “características” de um gênero ou de outro.
No final
Como toda boa obra de arte, este livro deixa espaço para muitas perguntas e reflexões, mas, se há uma conclusão a que podemos chegar é que, apesar de sermos todos alienígenas uns aos outros, no final, todos fazemos parte da mesma humanidade.
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