Uma história dos confins da Amazônia:
Naquela tarde, em dezembro de 1974, em uma estrada de terra cheia de buracos e perigos, “seu” Quitério, como era conhecido, dirigia sua Perua Rural com todo o cuidado.
Estava feliz e preocupado ao mesmo tempo.
Feliz porque, ao seu lado, juntamente com sua esposa Rosa, estava a sua bela filha Elisabete, a Beta, de 22 anos.
Depois de um longo período estudando na Faculdade da capital, finalmente ela retornava para sua casa, uma fazenda de gado nos confins da região sul da Selva Amazônica.
Preocupado porque ainda tinha que percorrer mais de 300 km por aquela estrada esburacada e deserta, no meio de uma floresta densa e perigosa, onde a casa mais próxima ficava a, pelo menos, 20 km. Além disso, aquela era uma época de chuvas na região e as nuvens escuras e ameaçadoras mostravam que não demorariam a cair e o que mais o preocupava era o horário, pois a noite já estava chegando, tornando a viagem mais perigosa ainda.
As mulheres conversavam animadamente, cada uma contando as suas novidades, enquanto seu Quitério, já com 50 anos, permanecia calado, alternando suas preocupações com as lembranças da sua vida atribulada, mas vencedora.
Ele tinha vindo do sul do país e, ao contrário da maioria daqueles que se aventuraram por aquelas bandas, tinha vencido todos os obstáculos e era agora uma pessoa muito respeitada na região, não só pelas muitas propriedades que possuía, mas, principalmente, porque era um trabalhador incansável, justo e honesto.
O casal só teve dois filhos, mas o primeiro, um menino alegre, contraiu uma doença grave e faleceu antes de completar 12 anos.
Seu Quitério, então, não mediu esforços para que a filha Beta estudasse na melhor Faculdade da região e agora ela retornava para casa formada em Medicina e já faziam planos de montar uma clínica médica, tão carente por aqueles lados.
Todos os trê ocupantes naquele veículo estavam com os seus pensamentos, quando, de repente, um imenso clarão surgiu no horizonte e, consequentemente, todos ficaram quietos e amedrontados.
Dona Rosa, com o seu jeito interiorano, perguntou:
— O que foi isso Quitério? Foi um raio?
— Não sei não Rosa! – Respondeu o Quitério, com ar de preocupação. — Raios fazem barulho e não ouvi nada! Muito estranho!
O instante seguinte foi mais inexplicável ainda: parecia que o tempo tinha parado e os pássaros não voavam nem cantavam, as árvores não balançavam e até o vento parecia não soprar mais.
Seu Quitério parou o veículo, todos desceram e ficaram olhando aqui e ali, mas nada de mais aconteceu e resolveram retomar a viagem.
Meia hora depois, novo incidente: o motor do carro, do nada, simplesmente parou de funcionar.
Depois de muito examinar uma coisa e outra, seu Quitério constatou que não sabia qual era o problema,
Ficou aborrecido, soltou diversos palavrões e deu um imenso pontapé no pneu do carro, saiu pulando de dor igual a um Saci-Pererê, causando muitas risadas nas mulheres.
Passada a raiva, seu Quitério foi sentar em um tronco de árvore na beira da estrada, logo seguido pelas mulheres.
Ele colocou as duas mãos na cabeça, como sempre costumava fazer nestas ocasiões e falou com ar de preocupação:
— Não tem jeito, vamos torcer para que alguém passe por aqui e nos socorra, não posso ir atrás de ajuda, primeiro porque é muito longe e segundo porque não posso deixá-las aqui sozinhas, além do mais, a noite já está chegando.
Um silêncio “sepulcral” tomou conta do recinto, aquelas três pessoas, como se tivessem combinado, olhavam ao mesmo tempo para o “nada”, como se em sua frente não existisse uma imensa e verdejante floresta e nela centenas de milhares de animais, plantas e outros tipos de vida.
De repente, Beta levantou-se, quase que em um salto, apontou para a estrada onde a pouco tinham passado e gritou:
— Vejam, vem vindo alguém!
Todos olharam para aquela direção e, a uma distancia de mais ou menos 800 metros, via-se a silhueta de uma pessoa andando em direção a eles.
Dona Rosa, respondeu, comentando e perguntando ao mesmo tempo:
— Quem será? Sozinho e a pé neste fim de mundo? E olhem bem, é um homem e parece estar sem camisa!
Seu Quitério completou:
— Não só está sem camisa, mas parece que também está descalço e só está vestindo um calção.
Beta também fez seu comentário:
— É isso mesmo, o cara está quase pelado, os mosquitos devem estar comendo ele vivo, mas não é que parece bonitão.
Seu Quitério, preocupado, correu pegar sua arma que sempre levava no carro e escondeu-a em sua cintura comentando:
— Deixem que eu fale com o sujeito, fiquem atentas.
Assim que aquele transeunte foi chegando, foi possível vê-lo melhor:
Era de cor branca, aparentando mais ou menos 25 anos, de porte atlético, bem alto, mais ou menos 1,85 de altura, cabelos curtos e loiros, rosto arredondado e um andar suave e elegante, enfim, um homem perfeito.
Beta comentou ao ouvido da mãe:
— Mãe, que homem lindo!
Dona Rosa, com seu jeitão interiorano, repreendeu a filha:
— Aquieta seus “pelos” menina, não sabemos quem é o homem.
O homem chegou, parou em frente ao carro e não disse uma palavra sequer, seu semblante era calmo, mas parecia admirado com o que via, ora olhava para seu Quitério, ora para as mulheres, ora para o carro.
Seu Quitério tomou a iniciativa de cumprimentá-lo, como era costume por aquelas bandas:
— Boa tarde, quem é o senhor?
O homem olhou para ele pensativo, como se aquela fosse a pergunta mais difícil do mundo, ficou calado por um tempo até que respondeu simplesmente:
— Não sei.
Os três se entreolharam admirados até que seu Quitério voltou a falar:
— Como não sabe? Como pode alguém não saber o próprio nome?
O homem nada respondeu, parecia interessado no carro e começou a examiná-lo. Para espanto daquela família, ele, sem pedir qualquer autorização, abriu a porta e olhou o seu interior, depois foi olhar o motor, deitou-se no chão para examinar o carro por baixo e, sem se importar com toda a sujeira em seu corpo, e apontando para o veículo, perguntou:
— O que houve com ele?
— Não sei. – Respondeu seu Quitério. — O motor parou de funcionar e não consegui descobrir o problema.
O homem ficou calado por um tempo, como que meditando, até que falou:
— Se o senhor tiver ferramentas, eu posso consertá-lo, mas terei que esperar um pouco porque o motor ainda está quente.
Seu Quitério ficou meio abobalhado, não sabia bem o que fazer, até que falou:
— Sim, eu sempre trago ferramentas em minhas viagens. O senhor é mecânico?
Para novo espanto dos presentes, o homem respondeu vagamente:
— Acho que sim. Só sei que posso consertá-lo.
Seu Quitério foi abrir o porta-malas do carro e o homem o acompanhou, retirou uma maleta de ferramentas, abriu-a e perguntou:
— Estas servem?
O homem olhou rapidamente para as ferramentas, mas parecia interessado em outra coisa e, sem responder nada ao seu Quitério, que ficou com a maleta de ferramentas na mão sem saber o que fazer, pegou um pacote de livros e cadernos da Beta, olhou para ela, como que sabendo que aquilo lhe pertencia, perguntando:
— Posso olhar?
Beta foi apanhada de surpresa, meio sem jeito e não gostando muito da intromissão em seus pertences, mas sem muita opção, respondeu:
— Claro, fique à vontade.
Sem dizer mais nada, o homem saiu com o pacote, foi sentar no chão, com as pernas cruzadas, no outro lado da estrada e começou a examinar os livros e cadernos.
Seu Quitério, com cara de bobo e com aquela maleta aberta entre as mãos, ora olhava para a maleta, ora para as mulheres, que se seguravam para não cair em gargalhadas, até que falou:
— Senhor… Bem como você não sabe o seu nome, vou chamá-lo de Aparecido está bem?
O homem olhou para ele com um belo sorriso no rosto e acenou afirmativamente com a cabeça. seu Quitério voltou a falar:
— Bem… Aparecido, você não disse se as ferramentas servem?
Aparecido quase não deu atenção, parecia mesmo muito interessado nos livros que examinava e falou sem olhar para o seu interlocutor:
— Sim, sim, são mais do que suficientes.
Ele apanhou um caderno grande para desenhos, um lápis do estojo e começou a desenhar alguma coisa.
Seu Quitério foi sentar no tronco onde estavam as mulheres e ficaram conversando baixinho:
— Que homem estranho. – Comentou ele — Nunca tinha visto nada igual, será que ele sabe mesmo consertar o carro?
Dona Rosa respondeu:
— Ele me pareceu bem confiante, mas o que ele está fazendo agora?
Beta respondeu:
— Mãe, não ouviu o que ele disse, tem que esperar o motor esfriar, achou um jeito de passar o tempo, só isso, mas mãe, como é lindo! (Ao contrário da recomendação da sua mãe, seus “pelos” não estavam nada quietos).
O tempo foi passando e a tarde indo embora, ele continuava do mesmo jeito de quando sentou, sempre desenhando naquele caderno, de tempo em tempo, olhava para os três, parava um pouco e voltava a desenhar. Para mais um espanto dos três, um passarinho posou em seu ombro nu e ali permaneceu por um longo período, às vezes, Aparecido acariciava-o levemente com o dedo.
Seu Quitério estava nervoso, com a noite chegando, como iria consertar o carro? Começou a coçar os ralos cabelos da sua cabeça sem parar, até que a Rosa falou:
— Quitério, pare de se coçar, vai ficar sem cabelo na cabeça. O que você pode fazer? Nada!
Mais de uma hora depois, Aparecido levantou-se, arrumou os livros e cadernos na mesma ordem em que tinha apanhado, foi até o porta-malas do carro e colocou o pacote no mesmo lugar em que tinha achado, voltou-se para os três e falou:
— O motor já esfriou, agora vou consertá-lo.
Já estava escuro para esse tipo de serviço, mas ele parecia enxergar perfeitamente e começou a desmontar uma peça, depois outra, até que uma dezena delas, juntamente com porcas e parafusos ficaram espalhadas em uma lona improvisada no chão.
Seu Quitério estava desesperado, começou a andar de um lado para outro, sua cabeça já estava toda vermelha de tanto se coçar e as mulheres cochichando e se divertindo com aquela cena.
Aparecido não dizia uma palavra sequer, começou a remontar as peças até que tudo estava no lugar, olhou para os três e falou:
— Pronto, já terminei, agora vocês podem seguir viagem.
Imediatamente Seu Quitério entrou no carro e foi testá-lo, mas seu nervosismo cobrou seu preço: esquecera onde colocara a chave do carro.
Procura aqui e ali, olha nos bolsos, na maleta de ferramentas, no chão do carro, enfim, em todos os lugares possíveis e nada de encontrar, as duas mulheres vieram ajudar, mas foi em vão, até que Beta olhou para Aparecido, que estava com os braços cruzados só observando a cena e perguntou-lhe:
— Você sabe onde está a chave?
Para nova surpresa geral, ele respondeu:
— Sei sim, está sobre o teto do carro desde que cheguei aqui.
Todos olharam para o teto do carro e lá estava a chave, seu Quitério apanhou-a, virou-se para Aparecido e falou bruscamente:
— Por que não disse logo homem, não viu que estávamos desesperados atrás dessa chave?
Novamente, ele respondeu laconicamente:
— Ninguém me perguntou.
Finalmente seu Quitério pode testar o carro e funcionou perfeitamente. Imediatamente toda a sua raiva foi embora, desceu do carro, foi até onde estava Aparecido, deu-lhe um forte abraço dizendo:
— Obrigado, meu amigo, e desculpe-me por ter duvidado de você.
Virou-se para as mulheres e completou:
— Bem, vamos para casa.
Voltou-se novamente para Aparecido e falou:
— Você vem conosco, quero recompensá-lo pelo seu trabalho.
Aparecido, pela primeira vez, demonstrou tristeza, ficou um bom tempo pensativo, enquanto seus interlocutores se perguntavam o que acontecera, até que ele falou:
— Obrigado, mas não posso, não sei por que, mas tenho que seguir meu caminho sozinho.
Seu Quitério então completou:
— Mas como você vai ficar sozinho num lugar deste, tão longe de tudo? Não existe nada aqui por perto a não ser mata virgem, você sabe disso não?
— Sim, eu sei. – Respondeu-lhe Aparecido.
— Então me deixe pelo menos pagar-lhe por seus serviços. – Disse-lhe seu Quitério, meio aborrecido.
— Também não posso aceitar e o tempo que passei com vocês foi pagamento mais que suficiente.
Assim, despediram-se daquele misterioso homem e seguiram viagem. No caminho a pergunta era:
“Afinal, quem é aquele homem?”.
Dona Rosa em sua simplicidade afirmou:
— Quem é eu não sei dizer, mas não é desse mundo não! Vocês esqueceram aquele misterioso clarão que vimos antes do carro? E aquele pássaro em seu ombro? Nunca vi nem ouvi falar de um pássaro selvagem pousar no ombro de uma pessoa e ainda aceitar suas carícias! Coisas de outro mundo podem crer!
Beta então completou:
— Se é de outro mundo eu também não sei dizer, mas que era um belo homem, isto lá era, mas esperem um pouco…
Beta então se lembrou do caderno de desenho e tratou de apanhá-lo, dizendo:
— Quero ver o que ele tanto desenhou enquanto esperava o motor esfriar. Mãe acenda a luz do teto. Meu Deus!!!
— Que foi Beta? – Perguntou Dona Rosa preocupada.
— Veja isso mãe, que coisa mais linda!. Ele desejou nós três sentados naquele tronco, observe nossos rostos, são perfeitos, veja os detalhes, as árvores e esta linda flor com o pássaro pousado no galho, a estrada e até o carro com a chave sobre o teto. Meu Deus, ele é também um artista espetacular!
Nunca mais viram nem ouviram falar daquele misterioso homem e até hoje, Beta, com quase 60 anos, 4 filhos e 3 netos, guarda carinhosamente aquele desenho.
Que a paz esteja com todos.
Darci Men
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