Os Ossos do Imperador (Publicação 1 – A Charge e A Missão)

 I – A charge

Era uma linda manhã do dia 5 de setembro de 1972.

Estávamos no pátio do quartel onde eu prestava o serviço militar ensaiando para o desfile do dia 7 de setembro, quando o sargento Souza gritou:

— Men, saia de forma!

(Men era o meu “nome de guerra”, ou seja, nome simplificado adotado pelos militares para facilitar a comunicação. Eles costumam colocar esse nome no uniforme, sempre do lado direito do peito).

E o sargento continuou:

— Vá até a sala do comandante, ele quer falar com você.

Eu hesitei um pouco para cumprir a ordem e ele gritou:

— Acelerado, soldado, está esperando o quê? Um tapete vermelho?

A minha hesitação tinha um motivo:

Aquela ordem não era nada comum, o comandante era a autoridade máxima do quartel e eu nunca soube, de um caso sequer, de ele convocar um soldado para sua sala, tudo era tratado com os sargentos. Além disso, o comandante, que tinha a patente de tenente-coronel, era conhecido pelo seu mau humor.

Muitas perguntas começaram a passar pela minha cabeça:

O que o todo-poderoso comandante queria comigo? Seria o caso da charge?!

Bem, o caso da charge merece uma explicação melhor:

O meu melhor amigo no quartel tinha o “nome de guerra” Campili, mas todos o chamavam de Campelo, e ele gostava de fazer charges engraçadas de tudo e de todos e o danado era bom nisso. Bastava acontecer um fato curioso com alguém e ele logo tirava da mochila seus lápis de giz de cera e uma folha de papel e, em alguns minutos a charge estava pronta. Essas charges circulavam entre os soldados e até entre os sargentos e todos se divertiam com elas.

Dias antes do fatídico dia 05.09.1972, Campelo, empolgado com o seu sucesso, ficou ousado e fez uma charge do comandante. Era até simples comparada com outras que ele já tinha feito. A charge retratava o comandante apanhando da mulher, que era representada por uma matrona gorda e feia, com cara de ruim e com um pau de macarrão na mão batendo nele. A mulher dizia:

— Lá no quartel você dá uma de macho, mas aqui mando eu.

Não sei como, mas uma cópia da charge caiu nas mãos do comandante e ele ficou uma fera. Logo na manhã seguinte colocou toda a tropa perfilada no pátio do quartel, gritando:

— Quero saber quem é o autor disso? Todos irão permanecer nessa posição até que alguém resolva falar.

Acho que até os sargentos sabiam quem era o autor, mas ninguém falou.

(No meio militar existe uma espécie de “código de honra”, ou seja: ninguém “entrega” um colega nessas condições).

Resultado: ficamos naquele sol escaldante, em posição de “sentido” mais de quatro horas até que um dos soldados desmaiou e nos liberaram com a ameaça de que o fato seria esclarecido de qualquer jeito.

No entanto, os dias passaram e ninguém mais tocou no assunto.

II – A missão

Bem, cumprindo a ordem do sargento, segui apressadamente em direção à sala do comandante e no caminho fui conferindo o meu uniforme, olhei o quepe, o coturno, o cinto, a camisa, enfim, tudo.

Quando lá cheguei, mais preocupação: o comandante estava aos gritos com um sargento. Eu pensei: Tô ferrado!

Assim que o sargento saiu, eu entrei e, como sempre acontece nestas ocasiões, fiquei na posição de sentido, fiz a continência e falei solenemente:

— Soldado Men se apresentando.

Ele não falou nada, nem olhou para mim e continuou a escrever em uma espécie de relatório. Eu, naquela posição, não sabia o que fazer, até que falei:

— Comandante…

Ele me interrompeu imediatamente e de forma grosseira, respondeu:

— Eu já vi, não sou cego! Faça o favor de aguardar.

Depois de algum tempo ele colocou a caneta e o papel de lado, olhou-me de cima a baixo, encostou-se na cadeira com os braços cruzados e, sem tecer maiores comentários, perguntou:

— Você sabe dirigir bem?

Eu respondi que sim e que desde garoto dirigia o caminhão do meu pai e outros veículos. Ele, com jeito contrariado, voltou a falar rispidamente:

— Não perguntei desde quando dirige, perguntei se sabe dirigir bem.

Nessa altura, eu confesso, as minhas pernas tremiam mais que vara verde e só consegui dizer:

— Sim, senhor, eu sei dirigir muito bem!

Ele nem bem esperou eu terminar, dizendo:

— Então estou lhe designando para uma missão importante, espero que esteja à altura. O sargento Souza lhe dará todas as instruções. Dispensado!

Deixei a sala do comandante aliviado, afinal, estava “inteiro”. Agora com outras perguntas na cabeça: dirigir? Missão importante?

Voltei para o pátio, onde estavam meus companheiros, e pedi autorização ao sargento para “entrar em forma” (voltar ao treinamento), mas ele não permitiu, dizendo:

— Não! Vá até minha sala e aguarde.

Vi na cara dos meus colegas a preocupação, eles logo pensaram o pior e também associaram os acontecimentos com o caso da charge. Eles devem ter pensado: esse cara está perdido!soldado

Fui até a sala do sargento e, nem bem tinha entrado, quando ele entrou atrás, dizendo:

— Soldado Men, o assunto que vamos tratar é sigiloso e o senhor está proibido de comentar com quem quer que seja; isto é uma ordem expressa, se me desobedecer coloco-o numa corte marcial.

Bem diferente do comandante, o sargento Souza era do tipo “durão”, mas era aquele tipo de pessoa que se podia conversar e, não aguentando mais de ansiedade, perguntei:

— O comandante falou em missão importante…

Ele esboçou um sorriso maroto, respondendo:

— Você vai recepcionar um Imperador! Não é uma missão importante?

Ele notou que eu não estava entendo nada, explicando:

— Você foi designado motorista do comandante e amanhã levará ele e sua esposa ao Morumbi e depois ao Museu do Ipiranga, onde haverá a recepção e sepultamento dos restos mortais do Imperador Pedro I.

Ele fez uma pequena pausa, como para me “sentir”, concluindo:

— Não vá falhar, pois se falhar, eu também falharei, já que fui eu quem lhe indiquei. Alguma pergunta?

Eu iria fazer várias perguntas, mas ele me interrompeu:

— Aqui, neste envelope, está tudo que precisa saber. Você tem até o final do dia para decorar tudo, não saia desta sala, pois esses papéis não podem sair daqui. Voltarei mais tarde e, se tiver alguma pergunta, faça a mim e a mais ninguém.

Já ia saindo quando voltou-se para mim dizendo:

— Nunca se esqueça da primeira ordem que lhe dei: nunca, mas nunca mesmo, fale com ninguém sobre isso.

(Cumpri tão fielmente essa ordem que só agora, 37 anos depois, o estou desobedecendo).

Olhei para o envelope meio receoso de abri-lo e fiquei me perguntando: diacho! Em que ‘merda’ eu me meti?

Criei coragem, abri o envelope, retirei os papéis e comecei a examiná-los.

Lá estava todos os detalhes da “missão”:

Na manhã do dia seguinte, 6/9/1972, pontualmente às 6h30min da manhã, deveria retirar um Opala alugado em uma garagem onde um tal de Argemiro estaria me aguardando, seguir até a casa do comandante e levá-lo, juntamente com a esposa, dona Marta, até o Morumbi na casa de Maria do Carmo (mais tarde fiquei sabendo tratar-se da filha do ex-governador Abreu Sodré, que iria se casar naquela noite), depois levá-los até o Museu do Ipiranga, onde aconteceria a já mencionada solenidade de sepultamento do Imperador.

Tudo estava lá, desde o endereço da garagem, da casa do comandante e da Maria do Carmo, o roteiro que deveria seguir, os mapas e até onde estacionar o carro estava devidamente demarcado, além de um cartão com os números de três telefones para usar em caso de emergência. Haviam três ordens expressas grifadas em vermelho: sigilo absoluto, uniforme impecável e usar a arma só em último caso.

Os Ossos do Imperador:

Escrito por Darci Men e baseado em fatos reais, alguns nomes foram alterados para preservar suas identidades.

Parte 2: O Boi de Piranha e A Mulher.

Os Ossos do Imperador – 2 – O Boi de Piranha e a Mulher

9 comentários em “Os Ossos do Imperador (Publicação 1 – A Charge e A Missão)”

  1. Serei o primeiro a uivar então. Adorei o texto.Com isso eu fiquei com mais medo ainda do quartel.Ninguém merece.
    Mas que bom que deu tudo certo…

    Responder

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