a fábrica do poema
Waly Salomão
sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento
encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
faíscas das britas e leite das pedras.
acordo!
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo!
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se,
cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido
acordo, e o poema miragem se desfaz
descontruído como se nunca houvera sido.
acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas
e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita
no topo fantasma da torre de vigia
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que mascará retornará o recalcado?
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“Fábrica”: local onde se trabalha uma matéria-prima de forma a transformá-la em algum tipo de produto. Temos aqui a ideia de fábrica como um local de criação; criação que só é possível pois o espaço é organizado e estruturado de forma a propiciá-la.
“a fábrica do poema” é, então, um local que tem certa organização para que este “produto” seja criado ou podemos entender também esta “fábrica” como uma ironia à massificação que vem ocorrendo nos meios de comunicação, fazendo com que a arte perca em qualidade em decorrência da quantidade (ideia que vem ligada à de fábrica e de produtos em série).
Pensando o poema enquanto estrutura conscientemente arquitetada, um dos aspectos a merecer destaque é a visualidade: com versos curtos intercalados por outros mais longos, o poema assume uma forma material que nos remete a imagem de um prédio ainda no início de seu “crescimento”, levando-nos a prestar mais atenção nos próprios significantes* “arquitetura”, “cimento”, “britas” e “pedras” que são utilizados e repetidos (“palavra por palavra”) nos versos iniciais reforçando-lhes o significado* pela forma visual como estão empregados.
Repare na estrutura:
sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento
encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair
faíscas das britas e leite das pedras.
Ainda reforçando a ideia de construção planejada, o poema apresenta repetição de palavras como se fossem blocos se encaixando para “levantar” ou armar uma “parede-verso” (“encaixa palavra por palavra […])” ou na repetição de palavras com o uso da aliteração* e da assonância* (“e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo”). Pela utilização desses recursos sonoros percebemos como o poema vai se “erguendo” ao mesmo tempo em que seus “sons” nos remetem ao ritmo de algo sendo construído.
Por exemplo, na repetição das letras “t”, “p” e “c” (que têm sons mais “secos”) como se fossem os sons do trabalho de operários enquanto realizam uma obra (“sonho o poema de arquitetura ideal / cuja própria nata de cimento / encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair / faíscas das britas e leite das pedras. / acordo! / e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. / acordo! / o prédio, pedra e cal, esvoaça”).
Nesta primeira parte do texto, o poeta mostra que só alcançará o “poema de arquitetura ideal” se trabalhar as palavras de forma concreta, material. Assim como operários encaixam blocos de cimento para construírem uma parede, o poeta “encaixa palavra por palavra” para construir um verso e, de verso em verso, construir o poema.
A partir do verso “o prédio, pedra e cal, esvoaça”, o poema parece seguir numa outra direção, como se aquela solidez da construção arquitetônica fosse, contraditoriamente, fruto de um sonho que ao acordar (“acordo!”) fugisse das mãos do poeta “como um leve papel solto à mercê do vento […])” e que, por isso, não conseguisse se encaixar perfeitamente na construção, tornando o poema “cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido”.
Neste trecho, a aliteração das letras “s”, “v” e “f” (sons mais “suaves”) nos conduz para essa atmosfera de sonho em que tudo parece efêmero e fugidio. Já a aliteração das letras “m” e “n” (por seu som anasalado), contribui para este clima de sono que, somado ao ópio (alucinógeno), seria capaz de “fabricar” poemas-miragens (“acordo, e o poema miragem se desfaz / descontruído como se nunca houvera sido” e “assim é que saio dossucessivos sonos: / vão-se os anéis de fumo de ópio […])”.
O verso “metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros”, mostra um artista que pensa sua obra, pois são recursos “materiais” para a construção de um poema, são ferramentas que a linguagem oferece para elaborar um texto que seja esteticamente apreciável.
A última palavra é “recalcado” que é algo concentrado, bem calcado, ou seja, excessivamente e insistentemente trabalhado.
Assim, a metáfora da fábrica e da construção arquitetônica finaliza o poema de forma a nos deixar a ideia de uma atividade que exige planejamento, constante aperfeiçoamento e atenção durante sua execução, por isso, não adianta “permanecer à espreita / no topo fantasma da torre de vigia”, pois o poema não virá do sono, mas do trabalho feito para que as palavras se encaixem, “fiapo por fiapo”, até que o prédio-poema se construa.
Porém, “recalcado” também pode ser algo que está somente no plano do inconsciente (que foi “expulso” da parte consciente), o que mostra a riqueza do poema como obra de arte, pois abre para inúmeras possibilidades de leituras.
O poema, como obra de arte, não apenas diz sobre algo, mas na sua forma material ele reproduz sonoramente (aliterações e assonâncias*) e visualmente (aspecto gráfico) o seu conteúdo.
O modo como está organizado materialmente é que nos diria muito sobre seu significado (conteúdo), ou seja, forma e conteúdo são indissociáveis, pois modificam e completam o sentido do poema como um todo, assim, “a fábrica do poema”, produz uma construção, enquanto discursa sobre o trabalho para se fazê-la.
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É claro que essa análise não é e nem quer ser definitiva, a proposta é que, como leitor, possamos ver (ler) e ouvir o poema não apenas como um produto do subjetivo, mas também como Arte feita de palavras e sons, assim como um pintor usa tintas e cores; um escultor, madeira e mármore etc.
*
O poema na voz de Adriana Calcanhoto (clique na imagem ao lado), onde percebemos mais claramente o trabalho com a sonoridade. Aliás, esta música-poema dá nome ao CD da cantora de 1994.
*
*Significante: forma gráfica + som. Para a linguística: imagem acústica ou uma manifestação fônica do signo linguístico.
*Significado: conceito. Para a linguística: valor, sentido ou conceito semântico de um signo linguístico.
*Aliteração: figura de linguagem que consiste em repetição de sons consonantais idênticos ou semelhantes. Usado principalmente em poemas, mas também em prosa (poética ou não).
*Assonância: figura de linguagem que consiste em repetição de sons vocálicos idênticos ou semelhantes. Usado principalmente em poemas, mas também em prosa (poética ou não).
Para saber mais sobre:
Waly Salomão: Site Oficial
Teoria dos signos (significante e significado): SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 30ª Edição. São Paulo: Cultrix, 2002.
E você, já trabalhou na sua obra hoje? 🙂
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Waly Salomão…A primeira vez que ouvi falar dele foi em uma música dos Paralamas:
Cagaço
Os Paralamas do Sucesso
Esconde os dentes, segura a pancada
Abaixa o queixo pra salvar o nariz
Atropelado, atabalhoado
Bateu de frente com o trem social
Seguiu adiante, deixando os pedaços
Como a poesia de Wally Salomão
Cuida dos filhos, da filha-miséria
Com que carinho, com que dedicação
Pensa na fome, eu penso na língua
Em libertar meu pensamento burguês
É magricelo, um homem-martelo
Contra o mosaico do nada-que-se-fez
E o tom é de desilusão
E eu vou
Rastejar no chão
Eu tenho cagaço de descer ladeira abaixo
Tenho cagaço de pensar demais
Tenho cagaço de descer ladeira abaixo
Tenho cagaço de pensar demais
http://www.youtube.com/watch?v=O7xuJIoAfN4
Confesso que a primeira vez que ouvi falar em Waly Salomão foi com uma música também! 🙂
Maldição
Zeca Baleiro
Baudelaire, Macalé, Luiz Melodia
Quanta maldição!
O meu coração não quer dinheiro, quer poesia!
Baudelaire, Macalé, Luiz Melodia
Rimbaud – A missão
Poeta e ladrão
Escravo da paixão sem guia
Edgar Allan Poe tua mão na pia
Lava com sabão tua solidão
Tão infinita quanto o dia
Vicentinho, Van Gogh, Luiza Erundina
Voltem pro sertão
Pra plantar feijão
Tulipas, para a burguesia
Baudelaire, Macalé, Luiz Melodia
Waly Salomão, Itamar Assumpção
O resto é perfumaria http://www.youtube.com/watch?v=YZujeTyXuSY