Só ficou possesso quando a tinta da caneta vermelha que usava para fazer suas contas acabou. Soprou, esfregou, chacoalhou… Nenhum traço saiu daquela esferográfica.
Jogou-a pela janela do apartamento desejando que caísse na cabeça de alguém. É claro que uma caneta não faria tanto estrago assim, mas queria descontar a raiva daquele momento de algum modo e isso foi o máximo que sua imaginação pouco criativa conseguiu criar para aquele momento.
Não teve escolha, teve que ser mais forte que sua preguiça e levantar-se para procurar outra caneta. Melhor irritar-se procurando na bagunça de suas gavetas do que sair e encontrar pessoas… falar com elas…
Revirou seu apartamento já revirado e tudo que encontrou foi uma fotografia velha. Uma mulher. Não sabia ou não lembrava quem era. Colocou-a no bolso da calça. Aproveitou para procurar algumas moedas e, encontrando-as, saiu para comprar outra caneta.
Voltou da rua com a compra em mãos, na manhã seguinte. Passara a madrugada perambulando pela cidade, bebendo a custa de conhecidos e desconhecidos. Não os chamava de amigos.
Ligou o rádio. Ouviu apenas a introdução de uma música e sentiu-se só. Fechou os olhos e não os abriu até que se passasse a vontade de chorar. Dormiu no sofá.
Mulher e música se misturavam num sonho de stop motion que ele não conseguiria explicar, até porque o gesto de esfregar os olhos assim que acordasse o faria esquecer daquela que amara.
Continuando a caminhar no sonho em quadros recortados ao som do rádio, viu que a mulher em preto e branco vinha em sua direção para beijá-lo.
Acordou vasculhando os bolsos da calça; aliviado por encontrar a esferográfica azul, voltou a fazer suas contas.
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