(Adaptado de um texto de Érico Veríssimo)
Era bem relaxante observar naquela casa o aquário de cor violeta, onde um peixinho dourado, vindo do Oriente distante, fazia belas evoluções, cortando a água com o seu corpo ágil e elegante que lembrava os grandes artistas circenses.
Durante o dia a luz do sol refletia na água; durante a noite era a grande luminária no teto que se espelhava nela que, meio turva, dava a impressão de que a lua vinha visitar aquele minúsculo mundo, transformando-o em um lago dourado.
Um dia botaram no aquário um peixe azul, vindo não sei de onde.
Era uma criatura esquisita, cara feia, olhar distante e do tipo truculento.
Também sabia fazer suas evoluções, belas piruetas e até saltos espetaculares.
Certa vez, num desses mergulhos, acabou esbarrando no peixinho dourado.
Pararam os dois, olho no olho, ambos com rancor latente e falaram os mais horríveis palavrões na língua inaudível dos peixes. A partir de então, não houve mais paz no aquário.
O que para mim fora antes um “lago dourado” em um pequeno e divertido mundo, passou a ser uma arena de combate, um vaso de vidro bojudo, pequeno demais para conter o ódio de dois peixinhos decorativos.
O dourado, como morador mais antigo do aquário, achava que tinha todos os direitos. O azul dizia só reconhecer o direito da força e fazia vagas ameaças.
Certo dia houve uma disputa por uma migalha. O peixe azul, após breve luta, ficou com o troféu. O rival achou deselegante brigar por comida e fez uma retirada estratégica e honrosa, saindo a nadar em serenas rabanadas e olhando com desdém para o seu rival.
Enquanto o peixe azul comia a migalha da vitória, o outro recitava discretamente a história da família.
A sua gente morava nos melhores rios do Japão. O seu avô era o peixe predileto de um mandarim muito importante que o alimentava com as iguarias mais estranhas e delicadas do Oriente. Seus antepassados todos eram ilustres; a sua ascendência se perdia nas cinzas dos séculos; e era certo que o mais remoto de seus ancestrais tinha nadado feliz nos rios do paraíso terrestre.
O peixe azul resmungou que não era nobre e que não acreditava nessas tolices de antepassados. Sequer se lembrava de seus pais e até achava que nunca tivera avós.
Uma noite a luta foi violenta. Eu quis intervir. Cheguei tarde. O peixe dourado estava morto.
Comecei a fazer reflexões amargas. Aquelas duas criaturinhas minúsculas, delicadas, coloridas e ornamentais também conheciam o ódio e a ambição, tinham o seu egoísmo e sua maldade.
O que se podia esperar então dos animais maiores?
Inclinei-me sobre o aquário e preguei um eloquente sermão ao peixe assassino sobre a fraternidade e sobre o amor ao próximo. O peixe azul não me deu ouvidos. Nadava imperturbável. Tentando talvez derrubar com uma cabeçada a sombra que se refletia no vidro do aquário numa mancha luminosa e tortuosa.
Fiz os funerais do peixinho dourado. E nos dias que se seguiram, observando as pessoas daquela casa, compreendi que não tinha razão para censurar o monstrinho azul.
Eu via um marido que odiava a sogra e não vivia em paz com a mulher que, por sua vez, vivia falando alto e aborrecendo todos ao seu redor. Uma sogra que odiava o genro e não compreendia a filha. Uma filha que aborrecia a mãe e não conseguia sequer se relacionar com a própria irmã.
As criaturas não se entendiam. Havia disputas tremendas e um dia a filha arranhou a cara da própria irmã com as unhas aguçadas e vermelhas, na frente das crianças menores.
De manhã discutiam para ver quem sentava no melhor lugar à mesa. À hora do almoço disputavam com palavras ásperas e gestos brutos os melhores bocados. Os dois rapazes se atracavam porque, embora irmãos, pertenciam a partidos políticos inimigos, a clubes de futebol rivais, a sociedades recreativas adversas.
Não havia paz naquele aquário de peixes grandes que não tinham nem ao menos o colorido alegre e a elegância de movimentos dos peixinhos do aquário menor.
Quiseram botar um peixe verde no aquário da sala. Pedi à senhora da casa que não fizesse isso. Era preciso que naquele lugar houvesse ao menos um cantinho onde morassem a paz e a serenidade. Assim o peixe azul ficou senhor do aquário.
E, depois de alguns dias, quando eu o imaginava no melhor dos mundos, descobri-o morto.
Compreendi, ao cabo de fundas reflexões, que os peixes, como os homens, precisam de luta para viver, se não lutam, se não alimentam ódios, se não se agitam, como é que vão ter a certeza de que estão mesmo vivos?
A dona da casa me censurou:
— Está vendo?! O senhor é o culpado. O coitadinho morreu de tristeza por falta de companheiro. Se me tivesse deixado botar o peixe verde…
Então, façamos mais reflexões: será que nós, seres racionais, não somos capazes de viver em “aquários”, onde as disputas sejam resolvidas dentro do bom senso?
Qualquer semelhança com nossa vida real não é mera coincidência.
Que a paz esteja com todos.
Darci Men
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