O céu do sertão nunca foi tão vivo.
Mesmo com o calor estalando o concreto das ruínas da antiga BR-232, o povo se amontoava nas sombras das árvores fotovoltaicas e nas varandas das casas impressas em barro sintético, os olhos grudados no horizonte — esperando o Boi.
Era noite de São João em Nova Caruaru, ano 2197.
E faltava um milagre.
Cecília, 17 anos, cabelo bagunçado, óculos com HUD quebrado no canto e um chip neural que falhava quando o clima esquentava demais, tava sentada de pernas cruzadas no terraço do Museu da Memória Junina, de frente pro “coração” do Boi Voador Sagrado. Um motor quântico do tamanho de um tonel de rapadura. A porcaria não ligava.
— Se o Boi não subir amanhã, o chão não canta, e se o chão não canta, a gente morre de fome — resmungou a Mestra Marluce, do seu canto, entre linhas de código trançadas como fitas de São João.
Marluce não era só Mestra do Bumba. Ela era uma Hacker de Tradições.
Com seus braços de fibra de babaçu e tatuagens de códigos antigos que só funcionavam em software de fé, ela dançava com as linhas da ancestralidade e do protocolo. Sabia invocar entidades arcanas da rede folclórica como quem canta um baião.
Cecília suava entre cabos e algoritmos, sentia o cheiro da palha eletrificada e do suor coletivo de gerações codificado no firmware do Boi. Aquilo não era só uma máquina. Era herança, resistência, grito embutido em lata reciclada, memória viva conectada direto com a Terra.
— O problema é que a galera quer que o Boi voe, mas sem chip. Quer milagre com o pé no barro e a cara na nuvem, mas sem aceitar que a gente virou outra coisa — ela disse.
Marluce sorriu, mastigando um pedaço de jaca desidratada com pimenta impressa.
— “Quem dança, os males espanta”, menina. Mas tem que dançar com a dor também. Com o medo. Com a mudança.
Do lado de fora, os Puristas de São Roque batiam tambores e recitavam versículos contra “a profanação digital do Sagrado Folclore”. Usavam mantos de chita, mas também drones espiões. Não eram burros, só estavam com medo. E medo é a senha mais usada da alma humana.
A madrugada chegou com cheiro de chuva boa. A primeira em semanas.
Cecília fechou os olhos. Respirou.
Chamou a avó em pensamento, aquela que bordava fitas enquanto assistia novelas em looping, que lhe contou, ainda criança, que a primeira dança do Boi foi feita pra enganar a morte. Que o riso salvava. Que o som do pandeiro podia curar.
E aí entendeu.
Não era só programação.
Era invocação.
Digitou com o coração acelerado:
lua function benzerSolo()
if (tradição and inovação) then
return esperança
else
return resistência
end
end
No primeiro raio de sol, o Boi acordou.
Seus olhos de LED brilharam em lilás. Os painéis solares nas costas se abriram como asas de borboleta. Das narinas de fibra de sisal soprou um vento morno carregado de nanomáquinas douradas, que desceram sobre os campos regenerando o milho, o feijão, o chão rachado.
E dançou.
O Boi dançou sobre a cidade com passos leves de 6 toneladas de fé.
O povo gritou. Os tambores pulsaram como se o coração do mundo tivesse voltado a bater. Até alguns Puristas caíram no choro, sentindo o peso da beleza — aquela beleza que te derruba o orgulho.
Cecília olhou pra Marluce.
— Acha que dá pra programar o futuro com axé?
— Menina, o axé é o código-fonte do futuro.
E naquela manhã de solstício, o Boi Sagrado dançou sobre Nova Caruaru.
Voando.
Regando a Terra com memória e esperança.
Entre foguetes e algoritmos.
Entre raízes e neon.
Entre tradição e o amanhã.








