O Quinze nos conta da seca que ocorreu no Ceará, em 1915.
Assim, através do relato da vida de alguns personagens, Rachel de Queiroz apresenta várias situações a que um retirante está submetido para sobreviver.
Um detalhe interessante é que na obra não há menção ao ano em que se passa a narrativa, isso permite que, durante a leitura, façamos comparações com outras situações de seca: quer dizer, a história que está sendo contada pode ter acontecido (ou se repetido) em qualquer lugar e em qualquer tempo do sertão nordestino.
Os personagens
Chico Bento
Chico mora e trabalha na fazenda de Dona Maroca, na cidade de Aroeiras. Com a seca e a falta de esperança na chuva, a patroa manda soltar o gado para morrer pelo sertão e dispensa os empregados.
Como resultado, Chico e sua família – “Só ele, a mulher, a cunhada e cinco filhos pequenos” – se veem obrigados a retirar: “Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto durasse a seca”.
Depois de passar por inúmeras privações durante a caminhada, os retirantes conseguem passagens para São Paulo, terra “onde sempre há farinha e sempre há inverno…”, ou seja, sempre há chuva.
No entanto, a narradora dá a entender o destino difícil daquela família na terra da garoa: “Iam para o desconhecido, para um barracão de emigrantes, para uma escravidão de colonos…”.
Conceição
Conceição pertence a uma família que possui fazenda em Logradouro, perto de Quixadá, e tem condições de viver na cidade com a avó enquanto a seca castiga o interior; mesmo assim, de certa forma, convive com os efeitos da estiagem, pois trabalha como voluntária no Campo de Concentração: espécie de praça em que os retirantes convivem e sobrevivem de esmolas e de doações do governo local.
Dessa forma, ela é a personagem que faz a ligação entre as diferentes camadas sociais, demonstrando que o problema da seca na região afeta a todos, seja financeiramente, com o gado que morre de fome, ou socialmente, tornando boa parte da população em retirantes.
Conceição é apresentada como uma moça de 22 anos, com ideias extravagantes: “Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias estranhas e absurdas a avó”.
Apesar da caridade e das suas leituras, era “Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso ideias e preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados”.
Preconceito que fica evidente quando ela expressa indignação ao pensar em um homem branco se envolvendo amorosamente com uma mulher negra: “Uma cabra, uma cunhã à-toa, de cabelo pixaim e dente podre!…”. Essas ideias pré-concebidas ajudam a impedir a concretização de seu envolvimento amoroso com Vicente.
A relação dos dois é narrada de modo a nos transmitir uma ideia de que o sol do sertão não seca só a garganta, mas também as almas, tornando-os incapazes de expressarem seus sentimentos, às vezes até os impedindo de sentir com humanidade: “Separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; era preciso lutar tanto, e tanto esperar para ter qualquer coisa de estável a lhe oferecer!”.
Vicente
Vicente, por sua vez, é o sertanejo forte, branco, mas queimado de sol – “o peito entreaberto na blusa, todo vermelho e tostado do sol”.
“Todo o dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim, amigo do mato, do sertão, de tudo que era inculto e rude. Sempre o conhecera querendo ser vaqueiro como um caboclo desambicioso” – com essa descrição, ele representa o homem que não abandona sua terra, mesmo na adversidade, demonstrando a esperança de vida no sertão: “Já comecei, termino! A seca também tem fim…”.
Os lugares
Como dissemos antes, o romance se passa no Ceará.
Grande parte da narrativa acontece no sertão, em Logradouro, cidade próxima a Quixadá – “Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo um cinzento de borralho”.
No entanto, os personagens se locomovem constantemente, caracterizando o êxodo para as cidades em de busca de soluções para a fome.
Esse ambiente seco condiciona, e não só condiciona, como também condena os personagens à fome e à subsistência: “Já era tão antiga, tão bem instalada a sua fome, para fugir assim, diante do primeiro prato de feijão, da primeira lasca de carne!…”.
Já outros, com melhores condições financeiras, o ambiente agreste lhes torna a alma agreste, como bem expressa Paulo Honório, em São Bernardo, de Graciliano Ramos.
Com relação ao ambiente social, não há uma grande separação do convívio entre ricos e pobres; há sim uma clara distinção das condições de sobrevivência de cada um desses grupos no período da seca.
A narração
O Quinze é narrado em terceira pessoa.
Esse tipo de narrador é onisciente, o que permite ao leitor conhecer os sentimentos dos personagens, mesmo quando não são expressos de maneira objetiva, mas apenas descritos: “E Chico Bento pensava: ‘Por que, em menino, a inquietação, o calor, o cansaço, sempre aparecem com o nome de fome?’”.
Há também o uso constante de reticências e exclamações, como se houvesse muito mais a dizer (…), mas que o espanto (!) diante da cena descrita não permite.
Assim, a linguagem que o livro utiliza é simples, possuindo, no entanto, imagens belíssimas e de rara sensibilidade diante da tristeza à vista da miséria humana.
Um exemplo disso é o episódio em que Chico Bento, atormentado pela fome e pelo apelo dos filhos por comida, pela primeira vez estende a mão para pedir esmola: “E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido… mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante”.
Outros exemplos de imagens podem ser verificados sempre que a autora compara a seca ao fogo – “Apesar da fadiga do longo dia de marcha, Chico Bento levantou-se e saiu; a garganta seca e ardente, parecendo ter fogo dentro, também lhe pedia água” – e às cores do sol – “Sombras cambaleantes se alongavam na tira ruiva da estrada” e “O sol poente se refletia vermelho nos trapos imundos e nos corpos descarnados”.
A época
O Quinze faz parte da 2ª geração modernista brasileira, movimento literário de ficção regionalista e social que apresenta, principalmente, questões relacionadas ao Nordeste.
Entretanto, apesar de descrever a seca e os retirantes, o romance não apresenta soluções prontas e nem cai numa tendência maniqueísta de separar os “pobres bonzinhos e sofredores” dos “ricos malvados” – o que acontece com alguns textos literários que se propõem a denunciar problemas sociais.
Não podemos esquecer também que Rachel de Queiroz militou no Partido Comunista e que, por isso, foi presa em 1937.
É uma grande autora brasileira, mulher de coragem para dizer o que pensa e que deixa bem clara sua opinião sobre a repressão na fala de um dos personagens d’O Quinze:
— Palmatória quebra dedo, Chicote deixa vergão, Cacete quebra costela Mas não quebra opinião!...
Para saber mais sobre a autora:
Academia Brasileira de Letras
Portal da Crônica Brasileira
Referência:
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. São Paulo: Siciliano, 62ª ed., 1997