“… pois todos os animais nasceram e se juntaram aos outros de sua espécie e viveram e trabalharam de acordo com as forças da vida e, por fim, entregaram novamente seus espíritos à guarda da Senhora…” (Gwydion)
O título pode passar a impressão que o enredo se centrará num personagem masculino e isto é verdade até certo ponto, porém ainda conhecemos os fatos pelas narrativas e visões das mulheres.
Contrapondo-se ao A Grande Rainha (Livro 2) – que começa no inverno, nos domínios de Lot –, este O Gamo-Rei inicia-se no mesmo reino, mas no verão. Após a morte do marido, Morgause governa de modo incontestável já que a população local está acostumada com figuras femininas de poder – simbolizadas pela deusa e suas sacerdotisas. Neste contexto e pelo olhar da mãe adotiva, somos apresentados a Gwydion: rebelde e indomável, inteligente e sagaz, possuidor da Visão e nem mesmo Morgause consegue manipulá-lo. Ainda por este olhar sabemos que ele é vaidoso – como sua mãe biológica, Morgana.
“Avalon. E então Morgause viu o sorriso secreto de Gwydion, e soube que ele estava esperando por isso. Mas ele nunca falou da Visão. Qualquer criança teria se vangloriado dela, se a tivesse! Compreendeu de súbito que Gwydion podia disfarçá-la, sentir maior prazer nela por ser secreta, e isto lhe pareceu estranho, a tal ponto que teve um movimento de repulsa, quase de medo, do seu filho adotivo. […]”
Viviane, Kevin e Niniane (última descendente da velha linhagem real de Avalon) decidem levá-lo para a ilha – planejam que se torne o próximo rei e que honre os compromissos de Camelot com a velha religião, já que Artur se tornou um rei cristão e está negligenciando este tratado.
“O que acontecerá ao Gamo-Rei quando o pequeno gamo tiver crescido?”
Pentecostes
Na corte, muitos se reúnem para as festividades anuais de Pentecostes. Taliesin, Lancelot e Morgana são alguns dos personagens que estão lá, assim como os reis vassalos, a fim de renovarem seus votos de fidelidade a Camelot, e muitos elementos do povo que levam petições e pedidos de justiça ao rei.
A festa, no entanto, não é motivo de alegria para todos os presentes. Taliesin está cheio de premonições sobre o futuro, não necessariamente boas. Lancelot ainda se sente perturbado por seu amor a Gwenhwyfar e Artur. E Morgana carrega a culpa por esconder o filho que teve com o rei, fazendo-o acreditar ser infértil, ao mesmo tempo em que sente vergonha por ter engravidado do próprio irmão. Mais uma vez, ela é a síntese das mudanças pelas quais aquela sociedade está passando, é um amálgama entre as duas religiões: a celebração da vida na deusa e a culpa cristã.
Outra pessoa presente na corte é Viviane, que vai exigir que Artur cumpra suas promessas de proteger Avalon, pois os reis subalternos estão proibindo os velhos cultos em seus domínios, profanando os bosques sagrados da velha religião. No momento em que a Senhora do Lago apresentava sua petição ao rei, Balim a mata…
“— Senhor meu rei – gritou ainda Balim –, deixe-me acabar com todas essas feiticeiras e magos, em nome do Cristo que os odeia a todos…”
Este acontecimento torna-se um marco da corte que passa a ser estritamente cristã. Ainda assim, Artur pede que ela seja enterrada na praça de Glastonbury, como homenagem, já que lá é também um lugar de peregrinação. Dessa forma, vamos assistindo aos velhos ritos sendo incorporados aos novos, as religiões se fundindo ao incorporarem a tradição com uma nova roupagem.
Livro 3
Nesta terceira parte, continuamos com os excertos dos pensamentos de Morgana que, tecendo comentários sobre os acontecimentos, torna essas reflexões numa espécie de salto temporal para a narrativa, pois é nestes trechos, por exemplo, que sabemos de alguns fatos, como a morte do velho Merlim.
Um novo personagem, Meleagrant, aparece durante as festividades alegando ser herdeiro de Leodengraz, pai de Gwenhwyfar e, portanto, sucessor de direito daquele reino. A rainha o despreza, dizendo não passar de um bastardo. Por isso, ele toma o país do verão à força, mas depois, sob trégua, pede que ele e a irmã resolvam a situação amigavelmente.
Gwen vai sozinha, pois quer provar a todos que pode ser útil em seu reinado, e não apenas uma tola – aos olhos de Morgana e de todos na corte. Mas as coisas dão errado. A trégua era uma armadilha de Meleagrant, que a violenta, pensando que isso fará Artur a desprezar e legitimá-lo como senhor daqueles domínios. O que mais surpreende nesta passagem é que mesmo diante de tamanha violência injustificada, tudo o que ela consegue pensar é que está sendo punida por ter pecado, ao mesmo tempo em que se sente responsável, assumindo a culpa pelo estupro, afinal “nenhuma mulher era violentada se não tivesse tentado algum homem a isso…”.
Estre trecho da trama é bem forte e um símbolo da culpa cristã jogada sobre as mulheres. Mas também se torna um ponto de virada para a personagem – que se liberta, momentaneamente, de seus pudores e tem um caso com Lancelot.
“Deus não me compensou pela minha virtude. O que me faz pensar que ele poderia me castigar? E teve, em seguida, um pensamento que lhe deu medo: Talvez não exista Deus, nem qualquer dos deuses que as pessoas acreditam. Talvez seja tudo uma grande mentira dos padres, para que possam dizer à humanidade o que fazer, o que não fazer, no que acreditar, dar ordens até mesmo ao rei.”
Para evitar que a “vergonha” da traição caia sobre o irmão, Morgana conspira com Elaine para forçar um casamento entre esta, dama de companhia da rainha, e Lancelot. Então, como Viviane antes dela, Morgana interfere no destino das pessoas próximas a si em nome do bem do reino.
Passamos a entender um pouco melhor as falhas e frustrações de Gwenhwyfar, pois o foco da narração intercala entre ela e Morgana, fazendo mais uma vez os contrapontos entre seus diferentes pontos de vista, numa alegoria das mudanças e contradições sociais e religiosas daquele tempo encarnada nessas personagens. Assim como o povo que continua realizando alguns ritos pagãos apesar da cristianização – como a escolha da Virgem da Primavera: uma jovem é escolhida para percorrer os campos em procissão ao mesmo tempo em que os padres abençoam a terra.
Depois do casamento de Lancelot, a rainha se volta novamente para a religião e, numa tentativa de expurgar o pecado de sua vida, conta para Artur o segredo de Morgana e insiste que ele o confesse para o bispo, penitenciando-se e colocando-se (e ao reino) nas mãos dos padres – o que é um prenúncio do que ocorrerá no futuro com os Estados europeus.
Morgana, por sua vez, casada agora com o rei Uriens, pensa em restaurar os velhos ritos, pois fez as pazes com a antiga religião e volta às suas práticas.
“Se eu tivesse me casado com ele na idade certa, Gales do Norte talvez nunca tivesse se tornado cristã. Mas ainda não é tarde demais. Há os que não se esqueceram de que o rei ainda traz, embora desbotadas, as serpentes de Avalon em seus braços. E casou-se com uma mulher que foi sacerdotisa da Senhora do Lago. Eu poderia ter continuado a sua obra aqui melhor do que durante todos aqueles anos na corte de Artur, à sombra de Gwenhwyfar.”
E vamos nos encaminhando para o quarto e último livro da série, O Prisioneiro da Árvore: as religiões e seus praticantes se misturando e o reino, agora em paz com os saxões, na iminência de uma guerra com Roma.
*
Leia mais no blog:
A Senhora da Magia – As Brumas de Avalon (Livro 1)
A Grande Rainha – As Brumas de Avalon (Livro 2)
O Prisioneiro da Árvore – As Brumas de Avalon (Livro 4)
————-