Clarice

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, mas veio para o Brasil ainda criança. Morou em Maceió, em Recife e no Rio de Janeiro. Considerava-se brasileira e nordestina – tanto que fez questão de se naturalizar.

Formou-se em Direito, mas pendendo para o meio literário, começou nele como tradutora, consagrando-se mais tarde como escritora, jornalista, contista e ensaísta. Além de ser uma das mais importantes escritoras brasileiras, também é considerada a maior escritora judia desde Franz Kafka.

Sua estreia literária se deu com a publicação do romance Perto do coração selvagem (1943). Neste texto, no entanto, vamos nos focar no conto Amor, que faz parte da coletânea Laços de Família (1960).

Sua escrita inovou o romance brasileiro com sua abordagem feminina, introspectiva e psicológica das personagens, em detrimento dos acontecimentos em si mesmos.

E sua narrativa aparenta estar cheia de banalidades apenas, porém, se prestarmos atenção aos recursos de estilo e às expressões pouco convencionais utilizados pela autora, estes elementos podem obscurecer ou trazer à luz o sentido que está nas entrelinhas do texto.

Epifania

Seus livros de contos parecem ser temáticos, pois as personagens, em sua maioria, são mães, esposas em situações familiares que fogem da rotina, espécies de crises – iniciadas por epifanias.

No conto Amor, por exemplo, a personagem Ana é uma dona de casa que, após ver um cego mascando chiclete num ponto de ônibus, desequilibra-se de tal modo que passa a ver o mundo à sua volta de maneira diferente, enxergando coisas superficiais e profundas que não via antes.

Este é um tipo de acontecimento recorrente na obra de Clarice: um fato, aparentemente banal, faz com que a personagem tenha uma epifania, de tal maneira que não consiga mais enxergar a si mesma como gostaria de ser, por dentro e por fora.

Epifania vem do grego, e foi (é) usada por cristãos como sinônimo de revelação – a revelação do Mistério religioso. Na literatura, depois de Joyce, ganhou status de revelação, transformação súbita pela qual uma personagem passa, causada por uma visão cotidiana. A epifania religiosa pode ser entendida como algo coletivo; já a literária, individual.

Ainda segundo o crítico Benedito Nunes*, a epifania, dentro do texto literário, pode ser entendida como “momentos de pausa contemplativa, que proporcionam, independentemente do entendimento verbal e discursivo, um saber imediato arraigado à percepção em estado bruto”.

Obviamente, em Clarice, a epifania não nos vem no sentido religioso, mas sim no de desmascarar os recalques dos papéis sociais que assumimos. Esta percepção perturba tanto as personagens que elas não sabem mais como voltar ao normal quando “estranharam” tanto a vida que viviam.

Amor

No entanto, não é exatamente assim que acontece com Ana. A protagonista de Amor passa pelo seu processo de epifania tendo até mesmo “sintomas” físicos, como náusea.

Ela desce do bonde em que estava e começa a vagar pelas ruas, indo parar no Jardim Botânico que, teoricamente, seria um lugar de calma, mas se torna perturbador, pois, após a revelação, ela passa a olhar e realmente ver as coisas ao seu redor, da forma como são, sem enfeites e sem explicações – apenas são:

“Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria.”

Movimento que a faz ver também suas relações familiares, a vida que escolheu construir, sendo mantida por muitos fios, mas todos muito frágeis. Aí, quando tudo faz pensar que haveria uma ruptura, há uma confirmação do amor familiar, do aconchego do lar, do marido acolhedor, que a fazem retornar à calma da rotina. Mas agora sabendo que há mais do que o que conseguimos olhar sem ver.

“Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.”

Todas estas sensações e percepções contraditórias se espelham na linhagem, quando a escritora cria expressões singulares usando ideias aparentemente contrárias: A crueza do mundo era tranquila.”, “o cego a guiara até ele”, “Era fascinante, e ela sentia nojo.”, “O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.” – num nível superficial, a autora estava falando do Jardim Botânico, mas podemos entender também este Jardim como o Éden, paraíso terrestre perdido, em contraste com o Inferno -, entre muitas outras.

O absurdo da vida

Ao se dispor a ler algum escrito da autora, você deve estar preparado para se despir de todo olhar viciado sobre as coisas, vendo assim algo do cotidiano como se fosse a primeira vez – descobrindo um novo objeto e todo o seu absurdo diante da vida, como algo que não tem nome, mas que ainda assim existe.

Talvez pareça ser uma escrita descolada da realidade social, mas se olharmos numa camada mais profunda também poderemos ver nessas pequenas epifanias banais, um incômodo, quem sabe até um questionamento que não se chegou a formular sobre os papéis sociais aos quais aderimos para viver em sociedade, incluindo aí questões relacionadas às “funções” de cada gênero no ambiente familiar e comunitário, já que as personagens principais são mulheres, e donas de casa.

Mas, mesmo que não haja essa camada de significação no texto, isso não quer dizer que a pessoa da escritora vivia alienada dos problemas da sociedade em que vivia.

No texto Liberdade e Justiça, por exemplo, ela discorre justamente sobre o fato de não conseguir escrever claramente sobre justiça social em seus trabalhos, e, em Mineirinho, ela faz uma reflexão sobre o papel da justiça em si na sociedade.

***

Veja mais:

– O Instituto Moreira Salles tem um material muito bom sobre Clarice, incluindo duas videoaulas ministradas por José Miguel Wisnik e Nádia Gotlib.

Entrevista concedida por Clarice ao jornalista Júlio Lerner, para a TV Cultura, em 1977, meses antes de seu falecimento.

Café Filosófico sobre A Legião Estrangeira (1964), palestra ministrada por Noemi Jaffe.

*NUNES, Benedito. O drama da linguagem, 2ª ed., São Paulo: Ática, 1995.

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